Dr. Luiz Antônio Bailão CRM: 17.555
Terceiro estirão: da nona à décima quarta semana
Final da organogênese e crescimento acelerado do sistema nervoso central, da face, do pescoço, das cinturas escapulares e dos membros superiores. O feto tem uma cabeça maior do que o corpo.
Ocorre um grande desenvolvimento circulatório nesses tecidos, aumentando a exigên- cia ao coração esquerdo. Simultaneamente, ocorre um grande desvio do sangue que retorna da placenta pela veia umbilical através do ducto venoso. Nesse período, o ducto venoso des- via 75 a 85% do sangue placentário para o coração esquerdo. É o ducto venoso que desvia a maior parte do retorno placentário (sangue arterial que volta pela veia umbilical) para o ventrículo cardíaco esquerdo, o qual vai incrementar o metabolismo na cabeça, no pescoço e nos membros superiores. Na realidade o ducto “venoso” transporta sangue arterial para a cava inferior, o qual, devido à velocidade alta e aos ângulos anatômicos, não se mistura com o sangue venoso da cava e é desviado diretamente ao átrio esquerdo pela válvula de Eustáquio, através da comunicação interatrial (forame oval patente ou CIA fisiológica).
Vale lembrar que o principal componente volumétrico do ventrículo cardíaco esquerdo vem do ducto venoso e não das veias pulmonares. A circulação pulmonar fetal é pequena. O incremento circulatório principal vai para a cabeça (feto cabeçudo) e provoca uma sobrecarga no retorno venoso e linfático. Os seios jugulares ainda não estão plenamente desenvolvidos e essa sobrecarga hídrica provoca o edema fisiológico na cabeça, nuca e dorso superior. O edema é mais visível à ecografia na região do occipital, da nuca e do dor- so superior (linha média posterior). É erroneamente chamado de translucência nucal, pois essa palavra diz respeito à transmissão da luz e não do som. O correto seria usar a palavra
edema, que é o que realmente está ocorrendo.
Já existe a palavra adequada (edema) e não entendi o motivo de usar uma palavra inadequada (translucência). Talvez seja mais bonita, pois a poética também é essencial. A palavra translucência ficou consagrada, o mundo a utiliza e não haverá mudanças, eu mesmo a utilizo, mas fica o meu protesto pois a semântica também é essencial.
No período de nove a catorze semanas temos os dois marcadores hemodinâmicos no concepto que podem ser explorados exclusivamente nesse momento: a translucência nucal e o fluxo sanguíneo no ducto venoso.
Ficou padronizado o período ideal de onze a catorze semanas, devido à acurácia maior do rastreamento ecográfico para esses marcadores. A translucência nucal indica riscos proporcionais ao seu valor. O ducto venoso tem pulsatilidade elevada (alta impedância) devido às altas velocidades e pressões, e utilizamos o tudo ou nada: contração atrial rever- sa é o rastreador de risco. Foi acrescentada a análise espectral da valva tricúspide para o rastreamento das alterações hemodinâmicas do coração direito, mas a acurácia é inferior.
O objetivo inicial foi a identificação das gestantes com maior risco para anomalias cromossômicas. Sempre converso com os casais a questão óbvia: estamos procurando o feto com risco aumentado, não estamos fazendo diagnóstico de doença cromossômica (cariótipo fetal). Outro fato importante é que a incidência populacional de anomalias cro- mossômicas não balanceadas é bem menor do que a incidência de anomalias estruturais. Passamos então a investigar minuciosamente a anatomia fetal para detectarmos mais cedo vários tipos de malformações.
Os diversos marcadores de risco (TN, DV, VT, osso nasal etc.) tem um valor mais amplo do que a detecção de risco para aneuploidias, pois estão relacionados com anomalias varia- das, como por exemplo: fetos com displasia esquelética grave, alterações hemodinâmicas (infecção fetal, etilismo materno e anomalias cardíacas estruturais) etc.
O plano correto para a medida da translucência nucal é o sagital da linha média, com a cabeça fetal em posição neutra e ampliada com zoom. Não conseguiu pela via vaginal, tente em seguida pela via abdominal (a medida também é segura). Prefiro começar o exame por via vaginal para avaliar melhor a anatomia fetal, o colo uterino e a artéria uterina.
O estudo do ducto venoso é sujeito a muitos erros técnicos:
O registro correto apresenta sinal de áudio típico. Treine a audição para interpretar os sons dos diversos vasos. Amplie bastante a imagem para visualizar o aliasing colorido do ducto. Calibre corretamente a escala de cinzas e o mapa vascular para identificar os dife- rentes vasos na região. Mais uma vez a questão do posicionamento espacial fetal.
Registros no início do ducto são contaminados pela pressão da veia umbilical, aumen- tando a incidência de falsos negativos.
Registros no final do ducto são contaminados pela pressão da veia cava inferior, aumen- tando a incidência de falsos positivos.
Dependendo do ângulo espacial do feto, a veia hepática média pode ser confundida com o ducto e produzir um resultado falso positivo. Podemos ainda ter uma superposição dos registros desses vasos. Por isso é importante o áudio para fazermos a contraprova.
Agora falaremos de algumas questões importantes no estudo do ducto venoso, considerando-se que as condições técnicas foram adequadas:
Fetos com alguma anomalia estrutural e com ducto alterado: aumenta o risco para síndromes cromossômicas, principalmente se associado com TN aumentada.
Fetos morfologicamente normais, com TN aumentada e com ducto alterado: risco aumentado para aneuploidias e/ou para anomalias estruturais que alterem o retorno ao coração esquerdo. Não se esqueça que estamos no período fetal do primeiro trimestre, quando a taxa de detecção de anomalias estruturais é menor.
Fetos morfologicamente normais, com TN normal e com ducto alterado: risco aumen- tado para anomalias que alterem o retorno sanguíneo ao coração esquerdo. Nesse grupo está incluído a infecção fetal no primeiro trimestre, notadamente as virais, além do etilismo materno. O risco para anomalias cardíacas ao nascimento aumenta de 8 x 1.000 (0,8%) para 30 x 1.000 (3%), além de aumentar o risco para outros tipos de anomalias estruturais (p.ex. displasia esquelética).
Nesse terceiro grupo temos o maior problema com o estudo do ducto venoso, que é o falso positivo da contração atrial reversa no ducto. Cerca de 50 a 60 x 1.000 fetos normais (5 a 6%) apresentarão ducto alterado. A gestante ficará estressada, perderá o sono (noites à fio estudando Doppler e olhando os monstros na internet), fará ecografias seriadas, morfo- lógico do segundo trimestre, ecocardiografia fetal, visitará vários médicos e o recém-nascido será normal, mas repleto de adrenalina materna. A gestante ficará com raiva do ecografista por todo o estresse causado.
É a velha questão dos exames de rastreamento: falsos negativos (fetos doentes com marcadores normais) e falsos positivos (fetos normais com marcadores alterados). Junto com os verdadeiros negativos (fetos normais com marcadores normais) e com os verda- deiros positivos (fetos doentes com marcadores alterados) teremos a acurácia do método empregado.
Devemos conversar de forma simples e clara com os casais sobre essas questões dos exames de rastreamento, principalmente quando somos questionados. Também é prudente escrever nos relatórios a acurácia do estudo.
Com o desenvolvimento dos protocolos para o rastreamento de outros riscos ma- ternofetais, tais como a prematuridade, a restrição do crescimento, a doença hipertensiva materna, entre outros, a ecografia de onze a catorze semanas incorporou a medição do comprimento do colo uterino e a análise espectral das artérias uterinas. Cuidado para não incluir o comprimento do istmo uterino na medida do colo.
Todo esse conjunto de avaliações entre onze e catorze semanas (clínica, laboratório e ecografia) revolucionou o pré-natal no período fetal do primeiro trimestre, antecipando inúmeros diagnósticos e melhorando os resultados da assistência maternofetal durante toda a gravidez e o parto. A ecografia ficou muito ampla e passamos a utilizar o nome de ultrassonografia morfológica do primeiro trimestre para abarcar todo o alcance do método. Um dos objetivos importantes da morfologia fetal do primeiro trimestre é o diagnóstico de anomalias estruturais. Por esse motivo prefiro realizar o exame no período mais estrito de 12,5 a 13,5 semanas, quando a anatomia fetal é mais visível, inclusive para a avaliação cardíaca e da fossa craniana posterior (rastreamento para a anomalia de Arnold-Chiari). Utilizo a avaliação transvaginal e, se necessário, complemento com a transabdominal. A acurácia é melhor com o feto maior, apesar de alguns ecografistas dizerem que fazem o mesmo diagnóstico com onze semanas. Acho temerário dizer que a visibilidade da anatomia num feto de 45 mm é a mesma da que se observa em um feto de 75 mm. De qualquer modo a
responsabilidade profissional é individual, assim como a prepotência.
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A: Translucência nucal normal. Ângulo facial, osso nasal, palato, fossa posterior e a translucência nucal.
B: Translucência nucal aumentada.
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C: Ducto venoso (vide a mudança de cor: “aliasing”). Traçado espectral normal, com contração atrial normal (onda A anterógrada).
D: Ducto venoso anormal, com onda A retrógrada.